Kenobi, o fracasso e o retorno do herói
Alguns fãs não entenderam a fase do Remorso Jedi, que também abateu Yoda e Luke, como uma imperfeição realista e temporária.
Por Charles A. Müller*
A série Obi-Wan Kenobi se passa 10 anos após o episódio III (interpretado por Ewan McGregor) e também 9 anos antes do IV (interpretado por Alec Guinness). Ewan voltou ao papel, mas está diferente. Não se trata apenas do envelhecimento natural do ator. A interpretação e a caracterização (do jeito da barba e cabelos “descuidados” às roupas que lembram um mendigo, visual que estaria na moda no Brasil). Aviso: contém spoilers até o capítulo 6 desta série.
Bião aparece nos primeiros capítulos vivendo o que eu chamo de remorso jedi.
Ele não oculta a identidade jedi apenas por descrição, o que é importante para proteger a própria vida e para cumprir o único compromisso que restou dos tempos de jedi na ativa: vigiar o menino Luke de longe e o proteger. Desconectar-se da Força, manter uma vida discreta são obviamente uma tática de segurança. Como disse o Grande Inquisidor, “o Código Jedi é como uma coceira”.
É especialmente difícil para um jedi, como Kenobi, presenciar injustiças e opressões e não poder interferir. Cenas assim, vistas na série, causaram um grande conflito interno para o Bião. Ele chegou a “se coçar” diante do funcionário explorado no trabalho, ou do Owen Lars (tio do Luke) sendo ameaçado por inquisidores. Mas, teve que se segurar.
Sua expressão está abatida. Enterrou o sabre de luz. Ficou “destreinado” (o termo correto seria desconectado). Isso explica a “surra” que levou de Vader no primeiro reencontro.
Seria mais uma obra de ficção a desconstruir o personagem masculino? Os fãs até poderiam desconfiar disto por conta do trailer (e com razão) mas, considerando que o personagem voltou ao seu “eu original” depois, não dá para fazer essa acusação à “Lucasfilm da Kathleen” ou à “Star Wars da Disney”. Pelo menos nesta série, Reva não é uma Mary Sue, ufa.
Melhor Professor, O Fracasso É…
Kenobi psicologicamente quebrado. “A guerra acabou, nós perdemos”. Ele vive a culpa pelo fracasso (naquele momento ainda não um aprendizado completo). Uma culpa institucional pela Ordem Jedi e pelo Conselho Jedi, com uma lista de vários erros, arrogância, tradicionalismo e “cegueira” (falta de percepção) sobre a presença sombria, do darkside em Palpatine, da guerra que foi fabricada.
Uma culpa individual acumulada por sua falta de coragem de assumir seus sentimentos por Satine Kryze, diferente de seu aprendiz Anakin com Padmé, a quem ele acobertou, o que pode ter acrescentado uma camada de culpa também. Culpa por não ter defendido Ahsoka. Depois uma culpa por não defender Anakin naquela manobra meramente política que colocou o rapaz no Conselho de uma maneira torta. E principalmente, por mais que seja injusto consigo mesmo, culpa por não ter impedido seu aprendiz de ir para o darkside e por fim, deixá-lo para morrer mutilado e queimado em Mustafar.
Como conclusão, Kenobi já acreditava que o melhor era o fim da Ordem Jedi. Vivia recluso no meio do deserto, trabalhando numa espécie de açougue grotesco e se não fosse pelo menino Luke, sem nenhum propósito. Contrasta e muito com o Kenobi mostrado antes, nas prequelas e com o idoso mostrado na Nova Esperança (que se vestia como jedi, tinha plena conexão com a Força e ainda manuseou muito bem um sabre de luz).
Nós já vimos, num momento bem posterior da timeline (episódio VIII) o Luke Skywalker, então idoso passando pelo mesmo remorso. Certo de que os jedi haviam falhado, inclusive ele próprio, Luke também sentenciou o fim da Ordem Jedi. Relutou em treinar a Rey. Jogou o sabre fora.
Foi aí que Yoda teve que aparecer como fantasma da Força para falar que “Melhor Professor, o Fracasso é”. Luke saiu da sua fase de remorso jedi e voltou à forma raiz, aceitando que Rey seria a continuação dos jedi.
Bem antes da “era Disney” na Lucasfilm, ainda com George Lucas, é bom lembrar, o Yoda também passou por esse remorso. Nosso primeiro contato com Yoda foi na trilogia clássica, já bem idoso, fora de combate, sem sabre de luz e relutante em treinar o Luke. Foi com uma pequena fagulha de esperança que ele acabou dando um pouco de treinamento ao rapaz, mas deixando claro que se este não enfrentasse o pai, o Imperador teria definitivamente vencido.
Esse Yoda contrasta bastante com o mestre poderoso visto nas prequelas. A espécie dele vive umas 10 vezes mais que nós humanos (900 x 90). Mas parece que em 19 anos, Yoda envelheceu 150. A explicação está no fim do episódio III. Yoda finalmente percebeu todos os erros da Ordem Jedi, do Conselho Jedi e dele como líder dos jedi. A gota d’água foi ter falhado (como ele próprio revelou) ao tentar parar Palpatine. Muito remorso o velho mestre sentiu. Passou um tempo comendo sapos no pântano de Dagobah, até viver sua última missão ao treinar seu último aprendiz antes de se unir com a Força.
O ensinamento que o fracasso apresenta é a possibilidade de reconhecer os erros, ser mais tolerante com as imperfeições próprias e dos outros e seguir em frente. Interessante que os jedi vão apreciar seus fracassos no exílio: pântano, ilha e deserto.
Nisto, lembro que na Bíblia Sagrada, o deserto simboliza o período de dor, fracasso e reflexão enquanto sair do deserto representa a libertação e o equilíbrio. Podemos dizer que por 10 anos, o deserto de Tatooine foi uma escola do fracasso para Kenobi e por mais 9 anos foi seu refúgio de paz até encerrar a missão.
Heróis Imperfeitos são Mais Reais
O arquétipo do herói geralmente é aplicado como uma pessoa “perfeita”, tendo alguma relutância em seguir o chamado heroico, tendo alguns conflitos internos e externos mas, cumprindo sua jornada e não dando margem a nada que o desabone. Esse é o Luke de toda a trilogia clássica, pois George Lucas adotou a jornada heroica (descrita por Joseph Campbell), fielmente.
E esse Luke é quebrado no episódio VIII. O próprio ator Mark Hamill disse que se assustou com o roteiro, que não reconheceu seu personagem nele. De fato, no final do VIII o Luke já havia saído da fase de remorso jedi. Para encarar o papel de mentor, assim como aconteceu antes com Yoda. O arquétipo do mentor é do antigo herói que ensina. Pode ser construído como pessoa perfeita também e fica realista se revelados seus momentos cinzentos.
Por vários momentos, Kenobi é humanizado, sua amizade com Anakin (colocando sentimentos fraternos de uma forma apegada que a Ordem Jedi não permitia e até uma tolerância com o aprendiz ser colocada acima da disciplina), sua “tentação carnal” com Satine Kryze e sua fase “remorso” mostrada nessa série.
Daí concluo que Kenobi, Yoda e Luke têm suas fases de remorso dentro da saga Star Wars mas, todos saem dela, voltando à sua grandeza original e logo, esta fase serve para humanizar estes personagens, fugindo da clássica representação do herói sempre perfeito. Fica mais fácil assimilar o herói quando ele, por errar, se parece conosco, né prezados leitores e leitoras?
Vemos essa diferença de construção do personagem herói se compararmos o Superman interpretado por Christopher Reeve (1978 e continuações) e o Superman pelo Henry Cavill (Homem de Aço, 2013 e aparições posteriores). O primeiro tem apenas traços de bondade, o segundo tem uma personalidade mais profunda, sentindo raiva e ódio, sendo mais… humano. Já um herói negando a própria identidade é que vemos no personagem Passolargo (o herdeiro da vergonha da raça humana em O Senhor dos Anéis), sua resignação muda para heroísmo quando ele se assume Aragorn, herdeiro de Gondor (O Retorno do Rei). O herói pode ter “mil faces”, ser mais denso que o “sempre perfeito”.
A Volta do Obi-Wan Raiz
A série do Bião seria um desastre se apresentasse o jedi quebrado no remorso sem trazê-lo de volta. Felizmente o ciclo é completo.
Ao perceber que Leia foi raptada por inquisidores que justamente a usaram como isca só para caçá-lo e que Vader estava bem vivo, Kenobi notou que somente sendo novamente um jedi poderia resgatar a menina.
A série mostra Bião se reconectando com a Força. Manejando o sabre em luta contra os imperiais. Sendo mestre nos disfarces (ops, essa cena da fuga de sobretudo no hangar da fortaleza dos inquisidores a gente tem que fingir que não viu). Até poder enfrentar Vader em toda sua plenitude ao final.
É bom destacar que o sucesso numa luta com sabres de luz não depende tanto do treinamento físico de manobra, que seria a técnica esgrima mantida por treinamento constante. Fosse assim, Vader daria um segunda surra em Kenobi usando apenas o sabre de luz. A luta com sabres está muito mais ligada à conexão com a Força, que impacta na relação entre sabre e portador e no estado de espírito naquele momento. É por isso que Kylo Ren perdeu de uma Rey “destreinada” por conta do remorso de ter matado o pai. É por isso que o Mando (Din Djarin) e Paz Vizla (ambos não sensitivos) perceberam o sabre negro como uma arma muito pesada.
Abrir crateras no chão, derrubar barrancos, levitar e jogar pedras gigantes. Nada disso é exagerado se tratando de Vader e Kenobi quando em plena forma. Sem provocar incoerência com os filmes, a série nos entrega uma produção de luta entre os dois, que o filme original de 1977 não poderia dar (no encontro dentro da Estrela da Morte).
Este Kenobi, mais parecido com o visto nas prequelas, ficará a uma certa distância de Luke e será visto mais idoso, porém um jedi convicto em Nova Esperança. Ainda restou um momento de falar com o fantasma da Força de Qui-Gon, que ele “não estava preparado para ver”.
Ao fim da série, Kenobi não está mais com o visual de mendigo. Barba já bem cuidada e roupas de jedi. Como sou fã e quero service, fiquei muito feliz de ouvir um “hello there”, por mais que antes da série eu tenha dito que isso não aconteceria. O Bião raiz voltou da fase de remorso e respiramos aliviados.
E vocês? O que acharam desta fase “remorso Jedi” com o Bião? Seu retorno como herói era o esperado? Comentem abaixo.
* Charles A. Müller é publicitário, cinéfilo, cosplayer do Obi-Wan Kenobi e VP voluntário do Conselho Jedi SC, fã clube de Star Wars. De vez em quando faz textão para a Sociedade Jedi.