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As Tribos de Tatooine

É numa rima visual de O Retorno de Jedi que o segundo episódio de O Livro de Boba Fett inicia com Fennec Shand levando seu cativo prisioneiro da facção do Vento da Noite para um interrogatório perante ao novo Daimyo. Ignorando as metodologias recentes adotadas por um Boba que se nega a usar tortura, Fennec parece ligar melhor com os medos que permeiam qualquer ser que sabe o que é ter um rancor guardado no alçapão. E justamente colocar o espectador a frente da vítima dos processos atuais que regem o castelo, é um dos poucos momentos que nos faz analisar o quão frágil esse governo pode ser, se mantiver a conduta da busca por respeito em meio a um caos de expansão que Mos Espa representa para nossa compreensão cultural de fãs de faroestes de John Ford. A expansão do Oeste é progresso, mas também traz junto a modernidade, problemas novos que exigem um traquejo de atualização de formas de olhar uma cidade e como lidar com ela.

O prefeito Mok Shaiz sabe disso. Tanto sabe que não se coloca acima ou a frente de Boba e seus planos de ambição para alertá-lo da diferença que é ser um caçador de recompensas e um Daimyo. O diálogo é preciso e o prefeito sequer demonstra medo das ameaças, mas informa Boba de onde ele pode tirar mais informações.

O jogo de transparência do protagonista parece não perder tempo: Garsa Fwip usa do mesmo caminho furtivo do prefeito para alertar qual facção do crime não está contente com seu avanço.

Em sua nova investida na cidade, Boba, ao caminhar, faz com que civis o encarem com a câmera à altura dos olhos. Outro interessante diretor de faroestes sempre coloca a câmera à altura dos olhos: Howard Hawks. É aqui que vemos o potencial audiovisual reinar e mostrar pelo tom da atmosfera e entendermos sem precisar do didatismo: a banda de Max Rebo para de tocar, os ouvidos nossos e dos personagens se voltam para um bumbo que anuncia a chegada do perigo iminente. Os olhos dos civis agora olham pra cima. O Bumbo se aproxima e finalmente entendemos o que uma simples liteira faz com o cidadão comum, o obriga a olhar pra cima para entender como as figuras opressoras se colocam acima da sociedade mesmo que isso seja de maneira figurada. Assim fomos apresentados aos primos do Jabba, os que conhecemos apenas como “gêmeos” que vieram reivindicar o trono e não estavam sozinhos, velhos parceiros de jornadas voltaram a encarar nosso ex-caçador de recompensas. A apresentação de Black Krrsantan traz em poucos diálogos a preservação de tudo que ele fez e foi no universo expandido. Aqui vale uma pausa para ressaltarmos a importância de materiais multimidiáticos que trabalham com a narrativa de forma paralela. O que nos interessa na série se mantém sem dependências, mas aos curiosos que querem “puxar a capivara” do personagem, vai se sentir feliz em poder conhecer os atributos de um wookie ex-gladiador e caçador de recompensas.

Estes momentos de delicadeza e de relacionamentos políticos que a rede de contatos traz aos protagonistas são algo que a diretora Steph Green soube transitar ao trabalhar com Damon Lindelof para a série Watchmen, a continuação direta dos quadrinhos que a HBO nos presenteou em 2019.

O salto temporal nos leva a um Boba Fett frágil que necessita de tratamento em tanque de bacta e, enquanto ele dorme, a narrativa trabalha em nos mostrar de forma detalhada como que sua nova forma de operação deixou o medo para que adotasse respeito.

De cativo a guerreiro, o protagonista está em treino com a sorte de trazer os melhores guerreiros do povo da areia para ensinar a arte da guerra. O treino é interrompido por um acontecimento inusitado e que carrega inúmeros simbolismos para o sentido que a série tomou: um trem que ao passar perto de onde a tribo está, dispara suas armas pesadas em tudo que possa ameaçar a integridade de carga e população. Um massacre que marca mais uma vez os olhos de um guerreiro que talvez só tenha visto algo igual na arena de Geonosis.

O trem no velho oeste

Um trem nos filmes de faroeste tem significados que vão além de um meio de transporte.

Símbolo de progresso nas nações do Velho Oeste, o progresso mostra a evolução de seu povo, como também estampa a maior fragilidade que o progresso pode criar na sua rabeira: a banda podre da sociedade sempre vai aonde o ouro está. É assim que os filmes de faroeste e quase todos influenciados por ele, mostram quais são os lados negativos de um progresso. Em Era uma vez no Oeste (1968), de Sergio Leone, o primeiro duelo ocorre justamente na plataforma de desembarque. São os vilões da barba a fazer dos melados no rosto que atraem moscas e os chapéus amassados com roupas desbotadas pelo sol que nos trazem medo. O mesmo tom foi adotado por John Carpenter em Fantasmas de Marte (2001), onde nós, humanos (mas lá num outro planeta em que somos aliens), implantamos um trem que atravessa o planeta Marte para extração de minério e que, por reação dos nativos, se transformou em cemitério. O mesmo trem revela as mazelas de um planeta acometido pela praga do toque da humanidade, que só teve como foco colonização e exploração.

Cena do trem vista em Fantasmas de Marte

Mais filmes ainda trabalham a mesma premissa, mas com estes dois exemplos de como civilizações modernas tendem a deslocar nativos para longe da expansão de civilização.

Estas condições colocam índios, marcianos e Tusken na mesma categoria de nativos descartados pelo progresso da humanidade.

Na pele do outro

As imagens noturnas de um Boba que carrega corpos para cremar revela muito do quanto ele já está inserido no povo da areia. Com tanta particularidade, ganha aval dos chefes para buscar a solução de mesmo calibre: vai para a cidade atrás da solução que detectou ao notar a movimentação da gangue de speedbikers. O primeiro detalhe é o caminhar pelo deserto sozinho e na segurança, alguém só faria isso com mais tempo de convivência com a tribo. E nós, fãs que esperam um pouco da colaboração, ganhamos uma atualização da estação de Tosches com a presença do casal Fixer e Camie, que vimos nas cenas cortadas de Episódio IV, de 1977.

Ao velho estilo saloon, todo moto-clube que intimida o ambiente é interrompido com a chegada do aborígene que dá conta de toda gangue de motoqueiros e sai em uma talagada clássica de balcão de bar, bem caricato para que saibamos em quais gêneros o episódio passeia.

Auto Moto Escola do Tio Boba

Regressando à tribo, o episódio mergulha no gênero comédia corporal de forma muito orgânica. O progresso chega aos selvagens do deserto, que recebem um treinamento sobre speedbikers. Pilotagem e estratégia são a devolução que o personagem pratica depois do recebimento da sabedoria da tribo em diversas formas de viver. Tal qual a vida, os momentos de tentativa, erro e acerto atualizam o povo da areia que já recebe a travessia do trem de forma diferente, já preparada para incursão de tomada do trem. Essa ideia já foi realizada com muito êxito no filme Solo: Uma Aventura Star Wars, que embora mal recebido pelo público do fandom de Star Wars, trouxe aos descompromissados que não cultuam a saga a impressão de uma boa aventurinha de matinê, marcando muitos fãs casuais justamente na tomada do trem, ponto alto do filme.

O Grande Assalto do Trem

Emparelhados com o trem, Boba e o povo da areia nos faz experimentar uma das maravilhas que o cinema nos proporcionou. Aos leigos, muitos diretores de cinema que tem faroeste em sua formação sabem bem o valor e a ousadia de se experimentar rodar uma cena de assalto ao trem. É necessário um domínio de tempo, de espaço e de câmera para dosar as imagens que nos cria um suspense entre os que estão fora e querem entrar, os que estão dentro e querem expulsar invasores e o timing da velocidade do trem que sofrerá mudanças em sua velocidade ou frenagem. Se você, ao assistir uma sequência dessas, se sentiu eletrizado e fisgado pela sequência de ação poderá afirmar que o momento valeu. Vale tanto que não somente dos faroestes, mas também ligado a Lawrence da Arábia, a disparada terrestre dos Tusken nos leva imediatamente para a derrubada de trem do clássico.

Belíssima rima visual com Lawrence da Arábia

E valeu de vermos as aventuras que ocorreram fora e no topo do trem que só atinge a calmaria quando a líder guerreira invade e revolve os problemas para que o anti-herói alcance a cabine e consiga frear o trem e manter os velhos conhecidos da franquia como reféns momentâneos. A presença dos Pykes numa série sobre guerra de facções mafiosas faz todo sentido para a trama que discorre na piedade do Boba em manter os mafiosos vivos e o aproveitamento da carga pelo povo da areia e o condicionamento da troca de itens e especiarias que os Pykes terão de fazer a partir daquele momento. Seria esse condicionamento da troca que permeou até o episódio de The Mandalorian: The Gunslinger em que Boba ensina o smuggler Toro Calican, que se faz necessário uma troca para avançar em território do povo da areia? Temos aí mais uma conexão entre as séries do mandoverse.

Um personagem valorizado dentro e fora da tela

O regresso de Boba Fett para tribo frente à fogueira tem um prêmio que coroa a sequência final deste brilhante episódio. Premiado com um lagarto pelo chefe da tribo, entenderemos o que um pequeno lagarto desses é capaz de guiar o protagonista por uma viagem insólita que permeia todos seus traumas. O transe causado pelo pequeno lagarto faz com que Fett caminhe pelo deserto em meio a alucinações baseados em todos momentos marcantes em sua vida. Uma lindíssima sequência do jovem Boba perseguindo a Slave One, hoje Firespray pelas janelas de Kamino, a traumática arena de Geonosis até o estômago do grande animal que tornou sua vida um marco. Repleto de imagens simbólicas como uma árvore e os antepassados dos Tusken que estavam em Tatooine desde que havia água no planeta, a alucinação termina com a quebra de um tronco e a explosão de águas nas dunas.

No cinema nacional, é no filme de Glauber Rocha sobre cangaceiros nas dunas que vemos uma das frases mais transgressoras do cinema brasileiro: O sertão vai virar mar, aqui numa produção de franquia capitaneada por um diretor fã de filmes áridos, a transgressão é a mesma e demarca bem o regresso de Boba Fett para tribo que começa aí o ritual de iniciação de seu novo membro.

Aos que conhecem o filme de tribo Maori (O Amor e a Fúria, 1994) que chamou atenção de George Lucas para chamá-lo para interpretar Jango Fett lá em 2001, entende que em todos os momentos que o ator Temuera Morrison esteve com eventos de Star Wars, já fez atores como o antigo Boba Fett Jeremy Bulloch e o jovem Boba Daniel Logan dançarem o Haka. Essa importância e resgate de memória que o ator leva sempre consigo foi finalmente valorizada dentro das telas.

Todo ritual de Boba é um ritual que eterniza Temuera Morrison e suas fortes ligações com suas raízes. Nossa conexão agora está nos olhos de Boba que passa pela cerimônia das vestimentas, da feitura das armas e principalmente da dança ao redor do fogo.

Nossas raízes e relação com o fogo, o corpo que dança e as expressões deixaram por um momento de ser nossos motivos de risos dos trejeitos do ator. Agora entendemos, quase que religiosamente, o valor das práticas tribais.

Entendemos melhor as tribos de Tatooine.

Entendemos melhor nossos antepassados e sua luta pelo marco histórico.

E entendemos que o ato de cultuar uma saga que abriga tantas culturas nos cobra um posicionamento dos valores culturais na vida do ser humano.

E que venham mais maravilhas como esse capítulo que nos pega desprevenidos e torna memorável o caminho que a saga percorre.

Por: Prof.º Me. Vebis Jr
Mestre em Cinema 
Especialista em Comunicação 
Graduado em Audiovisual e Multimídia

“O Cinema é um campo de batalha” – Samuel Fuller

Vebis Jr

Professor/produtor/pesquisador/podcaster em Cinema. Velho anarco punk rocker! https://twitter.com/Vebisjunior