Dossiê | Reylo: De inimigos a amantes? – Parte 1: O Despertar da Força
Esta é uma série de posts que mostra se Reylo, uma teoria que acredita que Rey e Kylo serão o casal da trilogia sequel, é possível pela perspectiva de uma das explicações mais comuns: De que eles seguem o tropo de inimigos que se tornam amantes. Como toda teoria (ou, neste caso, um ponto de vista sobre uma teoria já existente), leve isso como uma opinião baseada em como esse tropo funciona, nos filmes e livros em geral e no cânon, e antes de comentar sobre, defendendo ou atacando este ponto de vista, leia toda a matéria (e se possível, todo o dossiê) para não expressar opiniões equivocadas ou sem fundamento.
Tropos servem para focar em alguns elementos da história para que o público tenha um atalho para entendê-la antes do final. Enquanto tropos mal escritos podem ser vistos como “clichês,” os tropos de ficção mais comuns são tão populares, e são tão usados, porque eles tem uma lógica fundamental que os criadores sabem que a maioria ou boa parte do público vai entender instintivamente. No entanto, muitos tropos são similares um elementos essenciais o suficiente para confundir ou serem identificados erroneamente. Nesses casos, o contexto e a estrutura que permeiam a história, assim como um entendimento de como esses tropos funcionam – e o mais importante – por quê funcionam, devem ser especialmente considerados. Aqui examinaremos como o tropo “de inimigos a amantes” é usado na ficção popular moderna no cinema e comparar, contrastando com como o relacionamento entre Kylo e Rey é apresentado em O Despertar da Força. Essa comparação vai mostrar se essa relação, como apresentada no cânon, concorda ou não com o tropo.
“De inimigos a aliados,” e seu irmão popular, “de inimigos a amantes,” são extremamente comuns e são tropos de histórias populares. Sendo assim, é de se esperar que os fãs debatam o uso desses tropos na Trilogia Sequel de Star Wars. Mesmo assim é necessário lembrar que na ficção de mainstream, Esses dois tropos não são trocáveis, ou seja, dois personagens que poderiam ser escritos como amigos talvez não estão necessariamente sendo escritos para uma estrutura lógica de romance.
Ambos os tropos começam com a inclusão de dois personagens igualmente antagonistas, ou um herói e um vilão/antagonista. Geralmente o vilão está na mesma faixa etária do herói e, no tropo dos inimigos que viram amantes, eles tipicamente são de gêneros opostos. O vilão é usualmente escrito de uma forma, usando o presente e/ou o passado, para informar ao público de que ele não deveria ser visto como o “mal puro”, digamos, como o Imperador Palpatine em O Império Contra-Ataca e O Retorno de Jedi.
Também é comum que, quando o tropo “de inimigos a amantes” é usado, ambos os personagens são escritos como sendo igualmente cinzas em sua moralidade, somente posicionados em lados opostos do conflito. É o caso de James Bond e suas femme fatales e os personagens titulares de Sr. e Sra. Smith. Tipicamente quando esses tropos são usados e um dos personagens é escrito como herói e o outro como vilão, o personagem “mau” não faz nada na história que o público acharia imperdoável. Os criadores querem que o público eventualmente gostem do personagem e o vejam como um interesse amoroso aceitável (de acordo com as morais da época em que a história está sendo escrita). Fazer o personagem “mau” se tornar desprezível logo no início é contraproducente para este fim. É por isso que a Mulher Gato é uma ladra de jóias, não um terrorista que pratica/comanda/concorda com assassinatos em massa, e é por isso que, no Legends, Mara Jade é parte de uma gangue criminosa quando Luke a conhece, não uma agente Imperial.
Quando o conflito entre os personagens não é de natureza violenta, talvez seja o caso de que nenhum dos personagens está sendo escrito de maneira a cometer algum ato de verdadeira maldade. Muitas vezes os personagens não se gostam por haver algum desentendimento, como em Orgulho e Preconceito, ou um erro de caráter por parte de um dos personagens, como egoísmo ou temperamento explosivo, como em A Bela e a Fera. Tipicamente o conflito entre os personagens é resolvido quando aquele que estava errado ou acreditava estar errado prova a si mesmo como um herói ou alguém de bom caráter. A Fera salva Belle dos lobos e assim o conflito se resolve e seu romance começa. Sr. Darcy vai além para cuidar da família de Elizabeth e corrige seu erro quando ele percebe o que estava a deixando irritada. Elizabeth se apaixona por ele assim que ela vê tudo o que ele fez.
Em contraste, Kylo Ren em O Despertar da Força é claramente apresentado como um vilão (tanto na aparência como em ações). Ele é até apresentado como simpático por conta de seu profundo conflito interno e sendo o filho de dois heróis amados pelos fãs de Star Wars, mas mesmo assim não segue o tropo de “inimigos a amantes” porque ele é mostrado cometendo atos que seriam considerados imperdoáveis pelo público. E ainda, a narrativa não faz nenhum esforço para amenizar o mal visceral dessas ações. Ele pessoalmente mata e ordena a morte de civis inocentes (após Capitã Phasma o perguntar sobre o que fazer com os moradores da vila em Jakku, mostrando que genocídio gratuito não é necessariamente uma prática padrão, até mesmo na Primeira Ordem). E mais ainda, mesmo se sentindo “destruído”, ele matou seu próprio pai, Han Solo, um dos personagens mais amados do cinema, recentemente eleito em uma enquete da revista Empire como o melhor personagem da saga. Esse crime foi cometido “na frente do público”, e claramente voluntário.
Durante a história da ficção, o ato de matar um parente sempre foi considerado um dos atos mais hediondos que uma pessoa pode cometer. O fato de que o pai de Kylo era também um personagem tão amado aumenta o risco do público desenvolver sentimentos de animosidade pelo vilão. Isso é algo que um escritor não iria querer arriscar com um personagem se ele considera mostrar este personagem como o interesse amoroso de um herói. O público não o perdoaria tão fácil quanto seu interesse amoroso e seria muito mais difícil vender a ideia de que o casal se envolver romanticamente seria algo bom.
Tipicamente quando o tropo de “inimigos a amantes” é usado, os personagens são escritos de tal forma que um personagem nunca vai ser visto como a vítima do outro. Há vários métodos para conseguir isso. Um deles é fazer com que esses personagens sejam igualmente agressivos entre eles. Muitas vezes, essas ações são colocadas até como humoradas e os personagens estão mais impressionados e/ou atraídos do que com medo ou terror quando seu adversário ganha uma “partida”. É assim que o tropo é usado nos filmes de James Bond, em Sr. e Sra. Smith, e com Batman e Mulher Gato em O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Uma forma de prevenir que um personagem apareça como vítima do outro quando este outro é colocado como consideravelmente muito agressivo é contrabalanceando esse relacionamento pra que este favoreça o personagem menos agressivo. Essa inversão de poder permite que o personagem menos agressivo não tenha medo do mais agressivo. Foi assim que, no Legends, a dinâmica inicial de Luke e Mara foi escrita em Herdeiro do Império. Mara quer matar Luke, Luke não quer Mara, mas ele também não é escrito de forma que se entenda que ele teria medo dela de qualquer forma.
Agora vamos comparar com como a dinâmica de Rey e Kylo Ren acontece em O Despertar da Força. Por grande parte do filme, Kylo é mostrado como o personagem mais agressivo. Rey só se comporta de um jeito agressivo com ele em resposta a um ato de agressão que ele tinha feito a ela. Em Takodana, ela atira nele pois ele está a perseguindo. Durante a cena do interrogatório, ela entra na mente dele por acidente ao tentar tirar ele de sua mente. A batalha de sabres de luz na neve nunca teria acontecido se Kylo não tivesse perseguido Rey e Finn.
Também durante o filme, Kylo tem o poder a seu favor, ou seja, não há equilíbrio no relacionamento. Quando Kylo e Rey se encontram em Takodana, ele é mostrado como poderoso, aterrorizante e imparável enquanto Rey é mostrada, em comparação com ele, como aterrorizada e desamparada. Rey tenta se defender, mas Kylo facilmente derrota Rey e a sequestra. Na cena do interrogatório (a qual J.J. Abrams se refere como a “cena de tortura” no comentário em áudio de O Despertar da Força, e Rey também se refere a isso como “tortura” em uma recente edição da HQ de Poe Dameron), Kylo mais uma vez é mostrado como sendo o mais forte. Rey é sua prisioneira, e inicialmente ela não consegue resistir quando ele entra em sua mente. Ela se esforça, claramente em dor, e chorando, deixando claro que, mesmo o tratamento de Kylo sendo de alguma forma menos agressivo de que seu tratamento no interrogatório de Poe, está longe de não ser tortura. A angústia de Rey não mexe com Kylo, nem inspira nenhum sentimento de culpa ou compaixão.
Eventualmente ela consegue lutar contra isso e assim acaba entrando na mente dele, mas mesmo quando Kylo vai embora, Rey ainda é sua prisioneira. A balança do poder mudou um pouco mas ainda está em favor dele. Mesmo depois de Rey ter escapado, a balança do poder ainda está em favor de Kylo. Rey é uma fugitiva assustada em uma base sob a autoridade de Kylo. No duelo na neve, Kylo se mostra o mais forte durante boa parte da luta. Ele joga Rey contra uma árvore, fazendo-a desmaiar (mesmo tendo mostrado a habilidade de apenas imobilizar com a Força), derrota Finn, e quando Rey acorda, ela fica na defensiva. A balança do poder não muda em favor dela antes do precipício onde Rey consegue usar a Força pra derrotar Kylo. Em suma, J.J. Abrams violou muitos dos pré-requisitos do tropo “de Inimigos a Amantes” ao mostrar Kylo cometendo atos de maldade terríveis e colocando a balança de poder e o nível de agressividade em favor de Kylo por grande parte do filme.
Autores de histórias de ficção tentam evitar mostrar seus personagens como verdadeiramente maus ao escrever histórias onde inimigos se tornam amantes pois há o risco do público não perdoar o antagonista na hora do romance começar a se estabelecer. Eles também tendem a não escrever uma dinâmica onde a balança de poder e a balança de agressividade sempre pendem pro lado de um dos personagens no caso de quererem usar este tropo. Colocar os personagens desse jeito inicialmente pode colocá-los em um lugar de agressor e vítima, não sendo possível desenvolver uma história de romance, pois seria como um relacionamento abusivo. O fato de que J.J. Abrams colocou Rey e Kylo nessa dinâmica e mostrou Kylo cometendo atos de grande maldade sugere que o tropo “Inimigos a Amantes” não foi o tropo que ele escolheu para Rey e Kylo seguirem.
No próximo artigo vamos comparar o tropo “de Inimigos a Amantes” com como o relacionamento entre Rey e Kylo é apresentado em Os Últimos Jedi.